- A TARTARUGA
A chuva foi parando aos poucos, e o
céu cinzento deu lugar ao brilho do sol. O calor fazia bem aos dois, dava animo
para continuarem aquela aventura. Todas as criaturas da floresta saiam de suas
tocas, e todos podiam ver como a floresta se tornara mais verde depois daquela
noite de chuva forte. O caminho que percorriam estava difícil, a lama chegava
até a metade das pernas do cavalo, aquela cor amarelada de seu pêlo, agora se
tornara marrom. Estava cansado, porque tinha que ter mais cuidado ao andar na
lama, isso fazia com que tivesse que diminuir o passo, e o peso de César também
não ajudava no equilíbrio. Mas mesmo assim ele não desistia.
Deram mais uma parada para descansar,
e César se lembrou que não havia sobrado nada da comida que trouxera. Estava
começando a ficar com fome.
- Escute amigo, sei que está cansado.
Enquanto você descansa, eu vou caminhar e tentar achar alguma coisa que possa
comer.
“Por que você não caça algum animal,
vi que trouxe uma faca junto com você.”
- Você está louco? Acha que vou sair
por ai estripando esquilos? – e deu uma risada - não meu caro, acho que algumas
frutas estarão mais ao meu alcance.
“Bom, então cuide as frutas que você
vai pegar”.
- Lá vou eu! – e saiu andando pelo
meio da folhagem.
“Não vá longe César” – o cavalo calculou
se havia dado tempo de o garoto escutá-lo.
Agora o estômago de César já começava
a roncar, e ele tinha pressa em encontrar alguma coisa que fosse possível
comer. Também tinha pressa porque pensava que poderia voltar a chover, e isso
adiaria ainda mais a viagem deles. Então deveriam seguir em frente o quanto
antes. Mas de barriga vazia, ele não seria de muita serventia, precisava
encontrar algo. Não quis se afastar do cavalo, temia não encontrar o caminho de
volta, portanto ficou dando voltas na mesma área. Foi ai que alguma coisa
vermelha brilhou no meio de algumas plantas, eram pequenas bolinhas. A cor era
de um vermelho tão vivo, elas realmente pareciam frutinhas apetitosas...
Apanhou o que pode colocar dentro da camisa que havia feito de saco. Ficou
feliz, pensou que de fome pelo menos não morreria. Até sorriu para si mesmo.
Pensou na mãe, e nas delicias que ela sempre cozinhava, imaginou em cada uma
daquelas frutas um prato diferente que sua mãe já havia preparado, e foi com
água na boca, de cada lembrança boa e deliciosa, que ele comeu uma, duas, três,
dez frutinhas. E então seguiu o caminho de volta. Quando chegou ao local onde o
cavalo esperava, ele estava comendo também. Comia o capim enlameado que estava
ao seu redor. Levantou a cabeça para cumprimentar César, e seus olhos de pavor
encararam os olhos azuis de César. César ouviu aquela voz na sua cabeça, como
um suplício:
“Por favor, não me diga que você foi
estúpido a ponto de comer isso!”
- O que? Por quê? Elas estão realmente
saborosas meu caro. – e colocava mais uma na boca.
“CUSPA! AGORA!” – a voz ordenava na
sua cabeça – “Não é possível que você não se lembre de nada do que você
aprendeu quando era garoto! A primeira coisa que ensinam para as crianças que
entram na floresta é que estas frutinhas apetitosas são venenosas César!” - o
cavalo parecia estar bufando.
César cuspiu:
- Elas não deveriam ser rosa? As
venenosas? Eu lembrava que deveriam ser rosa, sim, você está enganado! – ele
sabia que não, mas ainda tentava se convencer de que não havia cometido aquele
erro tão idiota, e agora pensava que por causa disso, não cumpriria a missão, e
nunca mais tornaria a ver as pessoas que ele mais amava, porque ele iria morrer
da maneira mais estúpida que ele poderia ter imaginado.
“O que vamos fazer agora César? Me
diga! Me diga como ajudá-lo que eu faço!” – o cavalo estava apavorado, não
sabia que direção tomar, não sabia se deveria colocar César nas suas costas e
levá-lo de volta à vila. Mas lá também não haveria ninguém que pudesse fazer
alguma coisa, disso ele sabia - “Me diga, o que faremos? Quantas horas você
ainda tem? Duas ou três no máximo? Suas pernas já estão formigando?”
Era assim que elas agiam. Eram
vermelhas e brilhantes para atrair os idiotas. Depois de algum tempo de
ingestão, começavam os formigamentos, de início pelas extremidades. Depois a
paralisia do corpo. E por último, o coração deveria parar de bater. E ele
estaria duro, imóvel, morto naquele chão úmido e enlameado.
“O que faremos? Pensa! Rápido garoto!”
- Eu não sei, se estivesse em casa,
provavelmente chamaria o Doutor Pernáculo, o velho saberia o que fazer. Mas
aqui...
“Você deveria chamá-lo então!”
- Você se esquece de que eu não sei
onde foi parar todo mundo! Como poderia chamá-lo?
“Talvez, não sei, mas talvez você
possa...”
- Não, o que nós temos que fazer é
encontrar um rio, para que eu possa beber o máximo de água possível, e assim
tentar diluir esse negócio no meu estômago. Vamos! – e subiu nas costas do
cavalo – Corra! Corra!
Ele correu, com todas as forças que
tinha, precisava salvar o amigo. Eles podiam ouvir o barulho de água corrente e
sentir o cheiro das pedras molhadas. Mas parecia demorar uma eternidade para
encontrarem aquele rio. Mas então, finalmente, a floresta deu espaço a uma
margem de minúsculas pedras negras, e na beira dela o rio imponente.
César correu até a beirada das pedras,
deitou-se na margem, reuniu os dedos em concha e pegou um punhado. Engoliu com
a sensação de estar tomando um remédio milagroso. Na verdade, a água não seria
o suficiente para salvar-lhe a vida. A toxina não iria se diluir. Preparou-se
para pegar mais um punhado, quando avistou uma grande cabeça verde emergindo da
água. Foi então que aconteceu mais uma vez, a voz da criatura na cabeça de
César, chamando seu nome. O que ele viu a seguir foi o grande casco, numa
tonalidade verde escura, formando imagens quadradas. Aquela tartaruga deveria
ter mais de 100 anos, parecia velha e maltratada. Mas não importava, ela estava
ali, e estava falando com ele, assim como a voz aveludada e o cavalo o fizeram.
E a tartaruga disse a ele:
“César, o que lhe aconteceu filho?”
- O quê, mais um agora? Você me
escuta? Entende-me? – e olhou na direção do cavalo, que não parecia nem um
pouco surpreso com o acontecido.
“Eu escuto, eu entendo e eu sinto
você, sei que há alguma coisa errada. Deixe que esta velha tartaruga, que já
viveu muitos anos, conheceu muitos lugares e pessoas, te ajude neste momento
difícil. Conte-me o mal que o aflige filho.”
- Eu comi aquelas frutinhas vermelhas,
cerca de dez delas – e apontou para a camisa em forma de saco presa na mochila,
sobre o cavalo. Ali ainda haviam cerca de quinze daquelas malditas frutas.
“Mas você é estúpido ou o que meu
rapaz? Quantas vezes já não devem ter-lhe ensinado a não tocar nestas frutas, o
quanto são perigosas!”
- Estúpido pode-se dizer – disse com
um sorriso de meia boca.
“Primeiro você irá vomitá-las. Coloque
o dedo na garganta e force pra sair.”
César obedeceu. No início se sentiu
constrangido por estar fazendo aquilo. Depois pensou que eram só animais, não
havia motivo para ter vergonha na frente deles. Vomitou o que pôde. Viu os
restos vermelhos se misturarem às pedras negras e a água do rio vindo em
pequenas ondas limpar a sua bagunça. Sentiu alívio, aquilo teria que funcionar,
aquela tartaruga parecia saber o que falava.
“Agora que você vomitou o que
conseguiu, peça ao seu amigo cavalo que adentre uns metros na mata. Lá ele irá
encontrar uma planta cujas folhas formam um desenho de coração. Ela é de um tom
de verde muito escuro. O gosto é terrível, mas irá resolver o seu problema.”
O cavalo obedeceu à ordem, e alguns
segundos depois retornou com o ramo em sua boca. César mastigou aquelas folhas
fazendo caretas. O gosto era amarguíssimo. Parecia que sua língua não queria
obedecer à ordem de seu cérebro de mandar aquela pasta amarga pra dentro. Mas
ele conseguiu. Alguns minutos se passaram, e o formigamento das pernas não
existia mais. Os três se olharam e sorriram, César deu uma grande gargalhada:
- Então parece que esse final trágico
não estava no meu destino. Como posso lhe agradecer velha tartaruga?
“É só você continuar a sua jornada
filho, esse é o seu propósito não é? Eu vim para ajudá-lo. Essa foi a maneira
que eu encontrei de fazê-lo. Estou feliz de poder vê-lo vivo e com a alegria de
sempre. Afinal, você é especial César.”
- Parece que as pessoas só têm isso a
me dizer ultimamente, o quanto eu sou especial... Pessoas? Animais. E minha
mãe...
Ele se pegou pensando na mãe mais uma
vez, como sentia saudade dela e do amor dela.
- Mas me diga cara tartaruga, onde
aprendeu a deter venenos?
“Ah meu caro, eu já sou muito, muito
velho. Já vi muitas coisas boas e ruins acontecerem com as pessoas, e já tive
que ajudar muitas delas também. Nós todos temos um propósito nesta vida. E
ajudar os outros é o maior deles. Eu não poderia simplesmente ver você morrer
envenenado na minha frente e não fazer nada. E foi agindo assim, que eu fui
aprendendo certas coisas.”
- Pois então estou grato, e feliz de
tê-lo encontrado.
César abriu um grande sorriso e pousou
uma das mãos no casco da tartaruga. Ela pareceu retribuir o sorriso, mas é
claro, animais não sorriem. O cavalo se aproximou dos dois, e César colocou a
outra mão em cima de sua pata.
- Vocês dois não sabem como me
ajudaram até agora. Eu não sei se teria forças.
“Não se subestime meu amigo” – disse o
cavalo – “Eu sei que existe muita força dentro de você. Agora vamos, temos que
atravessar esse rio. Eu posso nadar, mas não com você em cima de mim. Você
nada?”
- Nado, mas não acho que possa
agüentar com esta correnteza e esta distancia entre as margens. Deve ter mais
de um quilometro até o outro lado. Acho que depois desse quase envenenamento eu
estou sem forças para isto.
“Não se preocupe filho, tudo o que
você tem que fazer é segurar em meu casco. O resto deixe comigo. Sei que sou um
tanto vagaroso em terra, mas ninguém nunca falou mal de mim nadando.” A velha
tartaruga deu uma risada.
O cavalo se aproximou da margem e
deixou as patas tocarem a água. Sentiu os pêlos arrepiarem de frio. Sentiu o
gelo da água. Teriam que ser rápidos na travessia, torcendo para que os
músculos agüentassem. Lá se foram os três, César agarrado ao casco da velha
tartaruga tentava ajudar batendo os pés, e o cavalo ao lado. A tartaruga tinha
razão, dentro d’água ela não perdia em nada para a velocidade do cavalo,
nadavam lado a lado. A diferença é que
na metade do percurso, o cavalo já sentia os músculos enrijecendo por causa do
frio. E César já não conseguia mais ajudar batendo as pernas. Mas chegaram à
margem oposta.
“César” – disse a tartaruga – “Você
precisa acender uma fogueira o quanto antes, senão você e seu amigo não irão
agüentar o frio, precisam se aquecer.”
Com o pouco de forças que ainda tinha,
César catou os galhos que achou pelo caminho e preparou o fogo. O cavalo
tremendo. Ainda era dia, e o calor do sol ajudava um pouco. Mas seria por pouco
tempo, algumas nuvens negras surgiam no horizonte, sinal de chuva para a noite.
Despediram-se da tartaruga, que ficou
no rio, ela não seguiria viagem junto a eles. Ajudou no momento que foi
necessária, a partir dali, seria apenas um atraso na vida deles.
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